Populações que viveram no Cerrado há mais de 10 mil anos usavam o fogo ativamente para o preparo dos alimentos e em cerimonias fúnebres, como é o caso dos povos de Lagoa Santa, MG. Essa prática de manejo do fogo foi transmitida aos descendentes e, com o tempo, aperfeiçoada. Assim, a maioria dos grupos indígenas habitantes do Cerrado (Xavante, Krahô, Kayapó, Xerente, Karajá, dentre outros) utilizam o fogo para limpar caminhos e os arredores das habitações, abrir áreas de cultivo, praticar a cultura itinerante (ou de corte e queima), matar ou expulsar cobras e pragas, atrair e conduzir animais durante a caçada, estimular a rebrota, a floração e a frutificação de algumas plantas, coletar mel, para sinalizar à distância e em suas guerras e rituais.
Os indígenas, e tradicionais como os quilombolas, tem grande conhecimento dos efeitos do fogo na natureza e possuem métodos refinados para utilizá-lo. Os Kayapó, por exemplo, reconheciam mais de 40 tipos de florestas, savanas e campos e usavam o fogo para criar “pomares”, onde plantam várias árvores frutíferas e outras plantas úteis; queimam a vegetação em volta desses pomares para protegê-los de fogos acidentais; sabem as épocas específicas de queimar para estimular a produção de frutos comestíveis ou para controlar doenças das plantas.
Na prática da cultura itinerante, pequenas manchas de vegetação são queimadas após as primeiras chuvas da primavera, de forma branda, num sistema rotativo. As cinzas fertilizam o solo e mantem alta a produtividade das plantas durante 2-3 anos. Depois, a área é abandonada durante vários anos para se recuperar. Com este sofisticado sistema agroflorestal, os povos indígenas e comunidades tradicionais manejam a vegetação nativa conforme suas necessidades, evitando que o fogo saia de controle, se torne um incêndio florestal, e tenha efeitos negativos para o solo, água, clima, fauna e flora.
Seja qual for a razão, os povos indígenas usam o fogo de maneira cuidadosa e precisa. Os objetivos da queima, o local e o comportamento do fogo são bem definidos. Decidem quando e como queimar com base em indicadores naturais, como nuvens, direção do vento, nível dos rios, ciclos das principais espécies vegetais e animais. Dessa forma sustentável, mantém os seus recursos.
Autora: Dra Vânia Pivello, Departamento de Ecologia, Universidade de São Paulo, vrpivel@ib.usp.br) + Revisores: Christian Berlinck, Lara Steil e Marcelo Santana